Morte Rubra

O romancista austríaco Robert Musil já dizia que “o poeta se antecipa ao progresso político (o que é poesia um pouco mais tarde será política)”. Se essa afirmação procede, poder-se-ia dizer que vivenciamos a primeira parte do mencionado conto de Poe quando, no dia 15 de março, o presidente da República incentivou o povo a ir às ruas festejar seus “feitos” em plena pandemia do coronavírus.

Não bastasse isso, cumprimentou parte de seus “amigos sadios e frívolos”, que se acotovelavam na frente de sua “abadia”.

Nosso “príncipe Próspero”, que, por prepotência, não se curva a qualquer peste, tal como no conto de Poe, decidiu ainda comemorar seu aniversário com seus escolhidos na sua “abadia fortificada”, no dia 22.

Na abadia do século 21, tal como na do século 19, amplamente abastecida, “o mundo externo que se arranjasse”. E Poe prossegue: “Por enquanto, era loucura pensar nele ou afligir-se por sua causa. O príncipe tomara todas as providências para garantir o divertimento dos hóspedes. Contratara bufões, improvisadores, bailarinos, músicos”. Quanto aos convidados brasileiros do presidente, cabe-nos perguntar quem eram eles e por que ignoraram a “furiosa pestilência lá fora”.

A festa do Palácio do Planalto, assim como a festa imaginada pelo escritor norte-americano, já dura algumas semanas e se espalha por outras salas, ou melhor, por outras pastas do governo.

Certos “comensais” do Planalto já atuaram como se estivessem de fato em um baile de máscaras, no qual é permitido, contudo, tirá-las e colocá-las a seu bel-prazer diante da população, apostando mais na performance do que na profilaxia diante da situação emergencial de saúde que o Brasil atravessa.

Cumpre destacar que, no conto de Poe, “luz alguma emanava de lâmpada ou candelabro em qualquer das salas”, as quais foram estranhamente decoradas pelo príncipe. A propósito, onde estariam a secretária especial de Cultura, o ministro da Cidadania e o da Infraestrutura?

Talvez “um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais”, pudesse iluminar ainda a sala do Ministério da Saúde, como diria Poe, mas vemos que a ilumina cada vez menos.

Parece que alguns amigos do presidente nem imaginam que no Brasil, assim como no principado do conto de horror, existe uma “sala negra”, descrita por Poe da seguinte forma:

“Na sala negra […] havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia”. Os “brônzeos pulmões” alertam hoje para a gravidade do coronavírus.

O fato é que a atitude e o discurso do chefe maior da nação retumbam no comportamento e no discurso de quem o cerca. Volto a citar Musil: “Dizer um absurdo é a coisa mais garantida: em algum momento ela acontecerá! Basta lançar uma estupidez no mercado”.

E a estupidez foi lançada —aliás, ela vem sendo relançada todos os dias. Não por acaso, até a quarentena, levada a sério em muitos outros países, por aqui é menosprezada, e o vírus é visto apenas como “uma gripezinha”, algo que não atingirá os amigos frívolos e o príncipe atlético.

A pandemia, para o presidente e seus “convivas”, se transformou em oportunidade para, em rede nacional, falar de desafetos (jornalistas, políticos, emissoras de TV etc.) e louvar apoiadores, por mais controversos que sejam.

Talvez “um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais”, pudesse iluminar ainda a sala do Ministério da Saúde, como diria Poe, mas vemos que a ilumina cada vez menos.

Parece que alguns amigos do presidente nem imaginam que no Brasil, assim como no principado do conto de horror, existe uma “sala negra”, descrita por Poe da seguinte forma:

“Na sala negra […] havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia”. Os “brônzeos pulmões” alertam hoje para a gravidade do coronavírus.

O fato é que a atitude e o discurso do chefe maior da nação retumbam no comportamento e no discurso de quem o cerca. Volto a citar Musil: “Dizer um absurdo é a coisa mais garantida: em algum momento ela acontecerá! Basta lançar uma estupidez no mercado”.

E a estupidez foi lançada —aliás, ela vem sendo relançada todos os dias. Não por acaso, até a quarentena, levada a sério em muitos outros países, por aqui é menosprezada, e o vírus é visto apenas como “uma gripezinha”, algo que não atingirá os amigos frívolos e o príncipe atlético.

A pandemia, para o presidente e seus “convivas”, se transformou em oportunidade para, em rede nacional, falar de desafetos (jornalistas, políticos, emissoras de TV etc.) e louvar apoiadores, por mais controversos que sejam.

fonte: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/03/conto-de-horror-de-poe-lembra-brasil-de-bolsonaro-acossado-por-pandemia.shtml

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